sábado, março 03, 2012

Ligou de novo. Uma atendente exigiu pe-la-mi-lé-si-ma-vez os seus dados.

Na linha

Valéria del Cueto

Após o grande esforço sentia-se esvaziado. Meses de preparação culminaram num trabalho bem feito. Aí, veio o inevitável reencontro com as pendências que ficaram pra trás, escanteadas pelo tempo necessário à realização da grande missão.

Foram essas pendências que agora caiam sobre sua cabeça, como quando abrimos as portas de um armário abarrotado de porcarias amontoadas, apertadas e empurradas para o fundo mais profundo das prateleiras mais altas, inalcançáveis e, preferencialmente, invisíveis. Até que tudo despenca e ficamos tentando aparar as tranqueiras, antes que cheguem ao chão. A experiência lhe dizia para não titubear, partir para uma organização mais séria e profissional. Nada de empilhar problemas de forma improvisada apenas empurrando-os com a barriga para o fundo do armário.

Muniu-se de paciência, persistência e uma enorme dose de gentileza para tratar com o carinho devido os envolvidos nas pendengas. Era um ser de paz e acreditava que a luz da polidez poderia fazer a diferença, iluminar as disputas e abrir os caminhos para a longa jornada que se dispunha a realizar.

Não que tivesse sido sempre assim. Em outros tempos, quebraria a louça, destruiria os pratos e, certamente, chegaria a seus objetivos. Só que percorreria estradas muito mais acidentadas e embates como esse deixavam marcas profundas, cicatrizes desnecessárias provocadas pelos cacos espalhados. Tinha aprendido – pensava – a lidar melhor com situações limite, aquelas que precisava resolver para seguir em frente. Família, burocracia, trabalho...

Não que antes não fossem devidamente finalizadas, mas o custo da intempestividade era alto. Atingia, principalmente, sua paz de espírito, seu equilíbrio pessoal. Aprendeu na porrada que a conversa era o melhor caminho. Isso, sem levar em conta as turbulências que impunha a terceiros. A experiência lhe ensinara que a gentileza era essencial para o bom andamento das negociações no desenrolar das pendengas.

Resolveu começar pelo problema mais cabeludo, se entender com a companhia de telefônica. Pegou o aparelho, discou, esperou que atendessem e começou seu exercício de gentileza: “Bom dia!”... “Olá, sou o atendente Eduardo” interrompeu sua polida introdução uma gravação. “Vejo aqui que você está ligando...”, continuou o atendente virtual. “Anote o número do seu protocolo, não se preocupe, esperarei você pegar uma caneta...” informou o robot de voz. Obedeceu. Ouviu o resto do lero-lero que pedia que marcasse 1 para falar sobre contas, 2 para conhecer as promoções... Como não era nada disso que precisava  ficou ouvindo a ladainha até o último número, o 9, indicado para quem quisesse falar com um atendente. Triscou o número e aguardou.

“Pois não”, disse uma voz de verdade. “Bom dia” disse caprichando na entonação, “eu gostaria...” “Diga seu nome, o número do seu telefone e os três primeiros do seu CPF” ordenaram secamente do outro lado. “Bom dia...” tentou de novo. “Se o senhor não fornecer seus dados não será possível realizar o atendimento” intimou, cheia de moral, a entediada e mal humorada voz. “Minha senhora, eu quero...”. Na verdade, queria, por que a resposta foi o irritante sinal de ocupado. Começou de novo, e de novo e novamente. Anotou protocolos e mais protocolos sem conseguir seu intento. O tempo passava e sua paciência se esgotava pouco a pouco. Horas depois encheu o saco.

Jogou para escanteio as boas intenções. Não sem, antes, fazer a bola tocar no adversário. Ligou de novo. Uma atendente exigiu pe-la-mi-lé-si-ma-vez os seus dados. Olhou para a bola concentrado. Chutou e fez seu gol olímpico: não deu bom dia, muito menos oi. Mandou pra puta que pariu a voz do outro lado e bateu o telefone, com o fígado desopilado. A seguir jogou para o alto os pepinos, fechou a porta do armário, isolou a chave e seguiu a vida. Afinal ninguém é de ferro, nem nasceu para ficar engolindo frustrações e aturando a incompetência alheia. Desembuchou e guardou sua gentileza para quem a merecesse.

* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Esta crônica faz parte da série e “Ponta do Leme”, do SEM FIM


Um comentário:

  1. Texto bem humorado o da Valéria, muito bem acompanhado pela ilustração da Nana.
    Às duas, parabéns!
    bjs,
    Eliana Crivellari

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