Breve história do Barranco, um meteórico jornal
Montezuma Cruz
Abaixo da logomarca desenhada pelo arquiteto Luiz Leite de Oliveira destacava-se o dístico: “Quem não é o maior tem que ser o menor”. Nascia em Porto Velho o jornal Barranco, fruto do meu esforço e de Jorcêne Martínez, com apoio da oposição ao governo territorial e ao regime militar.
Era um tablóide com ousadas reportagens mostrando ataques de jagunços a colonos no interior de Rondônia, crônicas de sexo, roteiro de tacacazeiras, hotéis e motéis de Porto Velho. Via Correios e distribuidores amigos, o jornal foi parar em bancas de Rio Branco, Manaus, Campo Grande, Cuiabá, Corumbá, São Paulo, e até no Rio de Janeiro.
Lançado em julho de 1979, quando ainda vigorava a ditadura militar instalada no País em 1964, o jornal durou apenas cinco edições, impressas em gráficas de Cuiabá, Rondonópolis e Goiânia. Barranco, o mais breve dos jornais rondonienses, conseguiu retratar a transição entre o velho Território Federal e o novo Estado. Era editado por mim e pelo jornalista Jorcêne Martínez, que chegou à cidade em 1978, onde foi correspondente do Jornal do Brasil.
Multinacionais, só elas, exploravam a cassiterita (minério de estanho).Apoena reclamava: Governo não convida a Funai nem para ato cívico.Jornal mostrava tropeços e atropelos do Poder Judiciário.Desmatamento já era problemático há 30 anos.
Na primeira edição já recebíamos intimações por escrito para depor na sede da Superintendência da Polícia Federal, no Bairro dos Tanques. Fomos lá sozinhos, sem advogado, apenas com nossa única arma: a palavra. O delegado colocou Martínez numa sala e eu em outra, submetendo-nos às mesmas perguntas. Queriam saber se as matérias publicadas “foram solicitadas pelo então deputado federal Jerônimo Santana”. Ora! Nada tinha a esconder. Respondi-lhe que eram informações verdadeiras e como tal foram divulgadas. Na saída verificamos aliviados que demos respostas semelhantes.
A lavra manual de cassiterita era proibida em Rondônia havia quase dez anos. O jornal citava uma a uma as empresas multinacionais “que formavam um feudo e odiavam garimpeiros”. O deputado acusava a PF de “perseguir a classe dos garimpeiros”. A PF reagia ao jornal, pois ele apoiava também a extração do ouro de aluvião no trecho do rio Madeira entre Jacy-Paraná e Vila Murtinho. Na interpretação da lei, mesmo considerando-se a massa de desempregados, aquela postura constituía-se um caso flagrante de desobediência civil.
UM INCÔMODO PARA OS PODEROSOS
Barranco noticiava que a Associação Profissional dos Trabalhadores Autônomos em Garimpos de Rondônia apelara ao então ministro das Minas e Energia, César Cals, afirmando em ofício que a Construtora Andrade Gutierrez havia declinado de seus direitos e deveres de pesquisa, ao entregar relatório de inviabilidade econômica da exploração, em 21 de dezembro de 1978.
O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) demorava a se manifestar sobre o assunto. Somente a decretação da área exclusiva para a garimpagem daria estabilidade aos garimpeiros, postulava o jornal, referindo-se ao ouro. Coincidentemente, era essa a proposta feita em meados dos anos 1970 pelo deputado Jerônimo Santana, ao prometer-lhes que a exploração das jazidas de cassiterita “deixariam de ser elitistas, passando ao trabalho manual.”
Denunciávamos a precária assistência previdenciária em Ji-Paraná; o abandono aos colonos na rodovia Transamazônica (BR-230); e a conturbada situação da vila Novo Horizonte, encravada no Projeto Paulo de Assis Ribeiro, do Incra, em Colorado do Oeste.
Uma capa enlutada em pleno natal na edição impressa em Goiânia.
Barranco causou-me aborrecimentos até na Igreja Católica. Havia me empregado com carteira assinada para ser redator do Porantim, jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 1981, ao saber que eu deixara Manaus e editaria esse jornal em Brasília, o então bispo diocesano de Porto Velho d. Antônio Sarto manifestava sua preocupação à direção do Cimi: “Vocês estão contratando jornalistas pornográficos!” Autor das matérias de sexo e da “Crônica zonal”, Martínez ria da situação.
No segundo número o jornal aumentava de 12 para 16 páginas, publicando um anúncio fúnebre assim: “Enlutados, a esposa Porto Velho e os filhos boêmios, políticos, biscates, desocupados, turistas, trabalhadores, estudantes e paqueradores participam o assassinato do mais querido ponto de encontro da cidade: o Café Santos. Ocorrido por obra do poder econômico, para quem a alegria de um povo nada vale diante do vil metal, a que ele chama de progresso”.
CORRIDA DO SEXO COM IRONIA
Ao dístico “Escorregadio, mas intransigente”, o jornal acrescentava“Para maiores de 16 anos”. Manchetes: Justiça de Rondônia, um flagelo/ Uturumbó, o inferno é aqui mesmo / Grupo de Regularização de Áreas Urbanas: não mexa nos meus trambiques / Garimpeiras do Sexo.
No cartum principal, Martinez dava voz a um personagem chamado Mané Tapiri. Frase dele: “Dane-se quem reclamar que a gente só fala de sangue, suor e lágrimas. Enquanto houver um só desassistido neste cafundó do Ministério do Interior, vamos continuar com o dedo na ferida. Doa a quem doer”.
Nesse número o lead de uma reportagem de três páginas dava o termômetro da situação socioeconômica da capital em 1979: “Dentro em breve, a corrida do ouro em Rondônia estimulará outra, menos arriscada, mas não menos excitante. Juntamente com garimpeiros, chegam diariamente a Porto Velho dezenas de mulheres vindas de Cuiabá, Goiânia, Rio Branco e até da Bahia.
A TV Globo exibia a novela “Pai herói”, o Banco Mundial despejava milhões de dólares na extinta Companhia de Desenvolvimento Agrícola de Rondônia (Codaron), e o mercado do sexo estava em efervescência. Morena, olhos verdes, Odete, a baianinha de 19 anos que havia passado pela zona do Ribeirão do Lipa, em Cuiabá, estranhava a freguesia nas boates (Rio Mar, Paiçandu e Copacabana) do Bairro do Roque: “Os homens daqui são muito trambiqueiros, quando não pechincham o preço. Parece que estão comprando tomate na feira”.
UMA JUSTIÇA INOPERANTE
Recém-chegado, o juiz de Direito (depois desembargador) titular da Comarca de Porto Velho, José Clemenceau Pedrosa Maia, foi um dos que experimentaram a morosidade do Judiciário: em 1978 ele proferia 1.400 sentenças, mas outros três mil processos se acumulavam no Fórum Rui Barbosa.
O advogado Pedro Origa Neto, então vice-presidente da Seccional da OAB, criticava: “Se Brasília, com cerca de um milhão de habitantes, reclama que o Judiciário é inoperante, imagine-se a situação do território, onde somente dois juízes atendem a uma população de 600 mil habitantes”.
Outro influente advogado abria a boca no Barranco: Fouad Darwich Zacharias, que veio a ser o primeiro presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. “Os mais de dez mil processos em tramitação na comarca significam uma demanda, sem exagero, para 20 magistrados”, dizia.
Indígenas tinham suas terras invadidas desde os anos 1970.
Com o dístico “Quente que nem nega em baile”, a terceira edição trazia o desabafo do sertanista Apoena Meireles sobre os Suruís e a questão indígena. Mostrava que os posseiros recorriam às armas para defender seus direitos. Publicava ainda uma entrevista bombástica com o então vereador Cloter Mota (MDB), então absolvido na Auditoria Militar de Belém num processo movido pelo então governador Humberto Guedes. “Fui processado por ouvir dizer”, desabafava Mota.
APREENDIDO NAS BANCAS...
Uma prostituta relatava como “caiu na vida”. Outras reportagens mostravam o despejo violento de famílias no Bairro Nova Porto Velho; as ameaças contra a organização popular no Bairro da Floresta, após a chegada da Eletronorte; e a maneira como latifundiários se apropriaram das áreas de Nova Vida e Milagres, no interior.
A coluna “Barrancadas” informava que um delegado de polícia torrava dinheiro em banquetes regados a vinho com os colegas, enquanto a alimentação dos presos era precária.
Foi a gota d’água. Por conta disso e com a publicação da “Barranqueira do mês” nas páginas centrais, o jornal recebeu ordem de apreensão da PF. Sob a justificativa de que o jornal “atentava contra a moral e os bons costumes”, agentes apreenderam seus exemplares à venda nas bancas do centro de Porto Velho, mas não impediram que eu e Martínez distribuíssemos o jornal de graça na Feira do Km 1, na Câmara de Vereadores, em repartições públicas, nos pontos de ônibus, na velha Rodoviária, na frente de colégios e no boêmio Bairro do Roque.
...E LIBERADO PELO MINISTRO DA JUSTIÇA
A censura à imprensa havia terminado em 1976 e não se apreendiam mais jornais alternativos ou convencionais no País. Atentados a bomba contra bancas de jornais e revistas viriam nos anos 1980. Recebemos a solidariedade do presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho.
Uma semana depois do recolhimento do Barranco, o assessor jurídico do jornal, advogado Agenor Martins de Carvalho, informava que o próprio ministro da Justiça, Petrônio Portela, assinava a liberação. Exibido como troféu, o documento passava de mão em mão.
“O exemplar do Barranco custava dez cruzeiros, mas pouco rendia a venda em bancas. Não tínhamos assinaturas. A gente gastava as poucas economias no pagamento da impressão e ainda recebia dois ou três anúncios comerciais. Até o Banco do Brasil publicou um comunicado e pagou religiosamente. Em lágrimas, deitado numa cama desde o AVC que o vitimou em junho de 2010, Martínez lembra que para custear mais uma edição eu torrei o dinheirinho da caderneta de poupança da primeira filha, Vânia de Lourdes.
Barranqueirinhos do mês: retrato das crianças sofridas, nuas e puras.
VALENTE ATÉ O FIM
Com uma capa negra, às vésperas do Natal de 1979, a quarta edição veio com o dístico: “Si bobeáberis, enrabatus eris”. Com tiragem recorde de seis mil exemplares impressos no Jornal Opção, em Goiânia, Barranco voltou à carga: no lugar da “Barranqueira do mês” publicou “Barranqueirinhos” – duas meninas e dois meninos brancos e um índio, nus.
Trecho do editorial: “Depois das curvas e reentrâncias da barranqueira do mês passado (pivô do que nos aprontaram), a pureza triste e sensual das nossas crianças. O pôster central é uma retardatária homenagem ao ano internacional delas. Quem apostou que voltaríamos a abordar temas sobre índios, posseiros, assassinatos e desaparecidos, ganhou. O resto é você começar a ler este exemplar, antes que os anos 70 terminem”.
No cartum de Martínez, o governador, coronel Jorge Teixeira, cozinhava políticos do PDS adesistas e também os dissidentes. Reportagens: Há mais podridão na Ceron que não apenas seus geradores / Depois das balas, formigas quase devoram colono vivo/Ribeirinhos: sobrevivência ameaçada/ “Teixeiragate”: ou a arte de lavar a égua” / Capitão de Exército arma jagunços para despejar posseiros em Cacoal / Arrocho também mata / A difícil vida fácil.
Nota no pé dos anúncios de motéis alertava: “Em nenhum desses locais encontram-se pastoras de plantão, exceto no Bangalô da Floresta. Os preços não incluem o michê daspastoras”.
Com o dístico de capa “Em terra de sapos, de cócoras com eles”, Barranco morreu na quinta edição, impressa em Cuiabá, cujos exemplares viajaram no bagageiro de um ônibus da Eucatur e começaram a ser distribuídos em Vilhena por mim e pelo jornalista Cleiton Pena, que se mudava para Rondônia.
A manchete “Começa o leilão” revelava o avanço de latifundiários do sul do País sobre as terras de Rondônia e da Amazônia, lançando um apelo: “A reforma agrária dos sonhos do general João Figueiredo deveria atender a objetivos sociais e cristãos. Não basta jogar as famílias nas terras, quando elas precisam de escolas decentes, assistência técnica, crédito bancário e, sobretudo, saúde”.
Outras matérias: Ainda se pode salvar Porto Velho / Onde está a Justiça? Vem aí mais despejos” / O futuro Saara (um texto de Geraldo Gonçalves, lamentando o desmatamento na região de Vilhena).
Ao autor, Montezuma Cruz, meus parabéns pela
ResponderExcluircoragem e pelo registro de importantes páginas
de nossa história.
Há que se preservar a História para que as gerações futuras conheçam melhor a si mesmas e entendam o mundo onde vivem, sem necessitarem passar pelo difícilimo resgaste do passado.
História não documentada,
ou mal registrada pelos que a vivenciaram
será, no futuro, história corrompida e distorcida.
Bravos, Montezuma!
Literacia cumpre um papel importantíssimo na divulgação desses relatos, razão pela qual
muito temos a aplaudir à grande
Professora Ana Merij, pelo trabalho esmerado
e acurado.
Nana, continue brilhando, seu trabalho é ímpar.
Louvo iniciativas desse porte.
A todos, meu abraço comovido,
sempre a admiradora dos seus talentos enormes,
Eliana Crivellari