sábado, dezembro 03, 2011

Eis que, de uma das mochilas repletas de equipamentos, surgem um caderninho e uma humilde caneta esferográfica. Vermelha! Era como se fosse um kit de armas letais e poderosas, tal a estranheza dos apetrechos empunhados.

Da mão nasce a canção

Valéria del Cueto
Que mania de ser diferente, até quando quer passar de forma despercebida, ignorada.
Imaginem a cena: o anexo redondo do Aeroporto Internacional Sensacional de Brasília e algum tempo de espera involuntária e obrigatória para pegar uma conexão para o sul maravilha.
Ipad, tablets, smartfones, computadores a todo o vapor, quer dizer, em plena conectividade eletrônica (vapor já era!) entre avisos de vôos, atrasos, nomes de passageiros perdidos, embarques finalizados, últimas chamadas e trocas de portões. Cafezinhos, pães de queijo, jornais e revistas...
Eis que, de uma das mochilas repletas de equipamentos, surgem um caderninho e uma humilde caneta esferográfica. Vermelha!
Era como se fosse um kit de armas letais e poderosas, tal a estranheza dos apetrechos empunhados.
O executivo empacotado num indefectível terno azul marinho de risca de giz olhou por cima dos óculos de vista cansada com que lia alguma coisa escondida pela tampa clara enfeitada com a famosa e desejadérrima maçãzinha.
A mulher da cadeira ao lado parou para ver, tentar ler e dar passagem aos garranchos que iam tomando de assalto a página decorada do caderno, sem dúvida mais interessante e certamente mais intrigante do que a paciência que ela jogava displicentemente movendo, teatralmente, seus dedos (ornados por unhas esmaltadas e anéis de ouro e brilhantes) na tela de seu “Eupode” da hora.
Outro engravatado, com o celular pendurado na orelha, declara entediado que “tempo é o que mais tenho, os vôos estão todos cancelados” com ar de quem passa por situações desagradáveis, como aquela, todos os dias de sua vida.
Pelos corredores transitam executivos com suas malas de rodinhas silenciosas. Eles diminuem o passo diante do exótico e deslocado caderno de anotações que vai ficando de páginas cheias diante da espera involuntária.
Não, não é paranóia. A simplicidade do ato de escrever sem maiores recursos tecno/contemporâneos incomoda o entorno. A ponto do homem que fala ao celular ir aumentando paulatinamente o tom de voz, tornando pública e audível a negociação de pisos, ares condicionados, enfim, a montagem de um mega escritório lobístico em plena execução. Quer desviar a atenção do movimento escrivinhatório que, cá entre nós, necessita apenas de papel e caneta para transformar idéias em ação. Assim, sem maiores burocracias.
E que não venham intimar o escriba aeroviário a ter um comportamento mais condizente com a realidade atual, sacando da mochila – que, diga-se de passagem, tem de tudo – computador, celular ou um tablet, algo mais adequado para se inserir adequadamente no contexto.
Nada irá convencê-lo a alterar seu “modus operandi”. Nenhum apetrecho servirá para melhorar seu desempenho ou a qualidade do resultado que advirá do seu esforço.
Até por, que para confirmar seu ritual e a eficiência de sua sistemática produtiva, acabou de ler numa entrevista com um escritor laureado com o prêmio Nobel da Literatura que esta continua sendo a prática essencial para a produção de seus textos.  (Re) conhecidos no mundo inteiro e editados em dezenas de idiomas. Afinal, se Vargas, o  Llosa pode, por que não ele?
A não ser que os guardas que se aproximam galopantes tenham a missão quase impossível de apreender as perigosíssimas armas com que defende suas idéias e princípios, tão danosas ao poder vigente que pratica os malfeitos que pululam no coração da capital federal...

* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Esta crônica faz parte da série Parador Cuyabano do SEM FIM


Um comentário:

  1. Meus agradecimentos a Valéria, pelo belo texto,
    e a Nana Merij, pela beleza do trabalho visual.
    Grandes artistas, parabéns,
    Eliana Crivellari-BH-MG

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