(Ins) piração
[Foto: Valéria del Cueto]
Valéria del Cueto*
O calor deu um refresco cuiabano e resolvi dar uma caminhada até a Avenida São Sebastião. Saí da lateral do Shopping Goiabeiras, colei no muro do quartel e segui até a 31 de Março para os novatos, Lavapés pra os entendidos em cuiabanices. Entre a largada e a chegada o 44º, o histórico Batalhão Laguna e mais uns penduricalhos de ambos os lados.
Para alcançar o muro lateral do espaço militar tive que subir uma pirambeira na rua Vereador Antônio Aníbal da Motta (quem terá sido esse?), capaz de demonstrar tudo o que não deve ser feito em termos de acessibilidade numa cidade. Num único quarteirão há degraus inexpugnáveis, garagens inclinadas, trechos sem calçada. Um show ao vivo e sem corte do politicamente incorreto e destruidor de joelhos implacável para quem não estiver em plena forma física.
A visão do muro é esta que apresento na foto do artigo de hoje. Interminável, parecendo caminho de ficção científica. Totalmente deserto. Numa certa altura, um portão está aberto e, ao fundo, algumas árvores já me chamam para um descanso. Vejo então, um atleta fazendo barra no contra luz cegante. O lugar merece ser devidamente explorado, mas não agora, quando tenho um destino definido.
Alcancei a Lavapés e a civilização habitada pode ser notada no ponto de ônibus, com alguns passageiros esperando nas sombras fartas das árvores em frente ao quartel seu transporte público permitido. Quem está ali nem grana para comprar uma motinho tem.
Sigo caminhando, agora beirando o muro de grades do batalhão. Passo pela guarida principal, onde um soldado me informa que só há uma entrada para a pista de atletismo. Não há como chegar lá pelo portão da frente do quartel. Há que retroceder, sin perder a esportiva, jamás.
Continuo contornando o muro, agora do lado oposto por onde o atingi, até chegar na Rua Brigadeiro Eduardo Gomes. O que me impressionou até então, a ausência de vida humana não motorizada, passa a ser uma regra quando me deparo com a exceção. Uma esquina abaixo, um estabelecimento com todas as suas mesas lotadinhas, em plenas 9 e meia da matina. Trata-se da padaria, onde um monte de gente dá uma passada ou uma ficada para saber as novidades e trocar impressões sobre as notícias cotidianas.
Toda cidade tem um ou mais lugares como esse. O que em Uruguaiana é o Bar da Praça, na Cuiabá chique do bairro Popular é a Viena e no centro da cidade o Senadinho. Esse ainda mais charmoso por que está situado numa garagem e por lá passam os que pensam comentam – faz tempo – o que acontece no dia-a-dia local. No Rio não encontro termo de comparação, por que cada boteco é um parlamento – no sentido lato da palavra. Só no Leme, penso imediatamente nuns dois ou três points com essa característica sem precisar sair do meu quadrado: o Bar do Coutinho, o Recreio do Leme e a Veneziana, colada a esse último.
O calor, que parecia haver dado um descanso, aperta novamente. Mas, então, distraída com meus pensamentos, já estou dobrando a São Sebastião, quase chegando a meu destino. Jurando nunca mais repetir a dose da caminhada, suada e sedenta adentro meu objetivo, pensando no trabalho que me espera. Cuiabanamente sei que só vou começar a respirar normalmente e, portanto, pensar coerentemente daqui a alguns minutos.
Tempo necessário para ordenar as idéias e me dedicar ao que faço agora: redigir meu artigo dominical. O tema seria o dia da Independência, na quarta-feira, a participação dos anonymous nas manifestações cívicas pelo Brasil a fora, protestando contra a corrupção e o Campeonato Mundial de Beach Soccer, em Ravena, Itália. Mas quem disse que me lembrei da pauta quando comecei a escrever, antes de atingir uma temperatura normal, ao som do potente ar condicionado que me acolhe? Se dê por satisfeito, caro leitor, ou desista de meus textos, por que posso abandonar tudo, menos o calorão que me embala.
* Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Esta crônica faz parte das séries Parador Cuyabano e Ponta do Leme, do SEM FIM
(Ins)piradamente, Valéria del Cueto fez do papel
ResponderExcluira tela, do teclado, a aquarela, e pintou o quadro do descaso para com as ruas. Que revela o descaso para com o povo. Que não aguenta mais morrer sufocado lá, aqui, acolá.
(Ins)piradamente ela falou.
Fez de nossos clamores o seu desabafo.
Será que irão ouvi-la?
Agradeço,
abraços,
Eliana Crivellari-BH-MG